sexta-feira, 17 de junho de 2011

Pedro Coutinho, mestre da navalha ao barbeador

Pedro Coutinho trabalha seis dias por semana, de segunda à tarde até a noitinha de sábado. Morador da rua Dr. Gabriel dos Santos, em Higienópolis, ele dá expediente no número 1408 da avenida Angélica, quase esquina com a rua Piauí e a uma quadra do Parque Buenos Aires. É ali, no andar térreo de um prédio residencial, que funciona o Salão Ideal, uma charmosa barbearia. Não é raro que Pedro saia pela rua com uma bolsinha a tiracolo contendo os apetrechos necessários para cortar cabelos e fazer barbas a domicílio. Este tipo de serviço costuma ser solicitado pelos clientes que não têm mais condições de sair de casa por estarem muito velhinhos ou doentes.

O leitor mais impaciente deve estar se perguntando o que há de relevante nesta história, afinal. Ela, de fato, não chama muito a atenção, não enquanto não vem à tona um pequeno detalhe: seu Pedro, como ele é conhecido no bairro, tem 96 anos de idade. 

Pedro Coutinho, 96 anos de idade e 76 de profissão, 56 dos quais no Salão Ideal, que fica no bairro de Higienópolis







Nascido em uma família de lavradores de café em São José do Rio Preto, interior de São Paulo, Pedro aprendeu o ofício de barbeiro observando os profissionais mais experientes da sua cidade, e aos 20 anos começou a trabalhar na área. "Naquela época era assim que se aprendia. Hoje em dia tem escolas, essa coisa toda", conta ele. Em busca de mais oportunidades, Pedro veio para São Paulo em 1955, aos 40 anos de idade. O seu primeiro e único emprego desde então foi o Salão Ideal - cuja fundação na década de 30 e longevidade até os dias de hoje é outra belíssima história.

Inauguração do Salão Ideal (ou, como o nome era grafado na época, Idheal) no seu atual endereço, em 1938. Terceiro da esquerda pra direita, o português Eduardo Ferreira Aparício começou o negócio em 1930 junto com a mulher, a austríaca Stephanie Piscovsky (que aparece na foto ao lado dele, de vestido branco e listrado). Eduardo chegou ao Brasil em 1921, aos 14 anos, e um ano depois já aprendia o ofício. Os equipamentos do salão eram todos importados da Europa, e o padrão de atendimento, sempre altíssimo. Havia uma espécie de divisória para demarcar o espaço das "damas" daquele dos "cavalheiros". Entre os clientes famosos estavam o poeta Mario de Andrade, o pintor Di Cavalcanti, os políticos Armando de Salles Oliveira, Eusébio Mattoso (que solicitou atendimento a domicílio no dia em que inaugurou o autódromo de Interlagos, em 1940) e Plínio Salgado, o publisher Júlio de Mesquita Filho (junto com seu filho Ruy Mesquita, então uma criança), o cafeicultor João Mellão, a pianista Guiomar Novais e a dama da sociedade Filomena Suplicy. Hoje, o negócio está nas mãos de três sócios: seu Pedro, o também barbeiro Carlos Roberto Oliveira e a dona do imóvel (que não mora em São Paulo e não interfere no negócio, contando apenas com uma participação nos lucros)

Casado desde 1947, seu Pedro tem três filhos, sendo dois homens e uma mulher. Ela mora em Portugal com o marido, que é natural do país. Já os filhos homens estão no Paraná, sendo um em Curitiba e o outro em Londrina. Com metade ou um terço da idade de seu Pedro, os colegas de trabalho no salão o entregam na hora, contando, aos risos, que ele é comilão. Seu Pedro traz de casa todos os dias a socada e bem-fornida marmita do almoço, e ainda aproveita para beliscar bananas e chocolates ao longo do dia.

Quando ainda não existia a hoje consagrada maquininha, era com este instrumento que seu Pedro cortava cabelos

O segredo de tanta vitalidade? Para o sempre risonho Pedro, é o próprio trabalho. "Se você largar o seu carro na garagem e ficar 15 ou 20 dias sem usá-lo, ele não vai pegar bem, não é? Vai começar a dar problemas", compara. E neste momento a conversa é interrompida pela chegada de um senhor de bastante idade (mas muito provavelmente mais jovem do que seu Pedro). Ajudado por um acompanhante, o cliente saiu de casa apenas para fazer a barba e o cabelo com seu Pedro. Com imensa dificuldade e usando um par de sandálias crocs coloridas, o velhinho caminha se segurando o quanto pode no jovem empregado ao seu lado, dando um passinho de cada vez. Na hora de subir o pequeno degrau da entrada do salão, seu Pedro lhe oferece a mão. E, com delicada firmeza, o ajuda.

Agradecimento: Teodoro Eggers Neto, por me indicar este fantástico personagem

Foto do salão em 1938: acervo Salão Ideal

Sexo feminino ou masculino? Nenhum dos dois


Norrie May-Welby, um escocês de 48 anos radicado na Austrália, tornou-se a primeira pessoa de que se tem notícia a ser declarada como não sendo nem homem nem mulher. Ele nasceu menino, passou a tomar hormônios femininos aos 23 anos e fez uma cirurgia para mudar de sexo, mas não se sentiu confortável depois das transformações todas e hoje se vê como uma pessoa sem gênero, simplesmente.

O governo do estado australiano de New South Wales, onde Norrie vivia, recorreu do primeiro registro que ele havia conseguido, com o argumento de que este não poderia conter nenhuma outra opção além de sexo masculino e sexo feminino. O escocês apelou então à Comissão Australiana de Direitos Humanos, que lhe deu vitória e validou o registro.

Faltam estatísticas sobre esta questão, mas especialistas afirmam que o número de pessoas que não se enxergam em nenhum dos sexos vem crescendo - apesar de ainda ser pequeno. Há desde indivíduos que fazem a cirurgia de mudança de sexo mas não conseguem se libertar totalmente das experiências que viveram quando pertenciam ao outro gênero até pessoas que vêem a sua identidade de gênero como fluida. "Para alguns, isso acaba se tornando até uma forma de protesto, visto que o gênero é um princípio organizador muito forte na nossa sociedade", acredita Walter Bockting, professor associado e psicólogo clínico na University of Minnesota Medical School e estudioso da transexualidade desde 1986. "O gênero se desenvolve no plano biológico e, em paralelo, também no psicológico. Você não consegue detectar a que gênero pertence uma pessoa baseando-se apenas em evidências físicas, não sempre. Você precisa perguntar a algumas pessoas com qual gênero elas se identificam. Nesse sentido, estamos diante da porção psicológica do gênero", explica ele.

O escocês Norrie May-Welby, gênero indefinido
Em entrevista à revista Veja em janeiro deste ano, a transexual Lea T., nascida Leandro, disse: "Mesmo com a cirurgia, eu nunca vou ser mulher. E também não serei homem. Eu vou ser sempre o do meio". Filha do ex-jogador de futebol Toninho Cerezo, a modelo Lea tem 30 anos e faz tratamentos hormonais há cinco. Ela passou também por psicoterapia. Se a Justiça de Milão, onde vive, concordar, ela passará em março deste ano pela cirurgia de mudança de sexo e terá todos os seus documentos modificados. Lea se sente mulher desde criança. Andava nas pontas dos pés e pendurava camisetas na cabeça nas brincadeiras, para sentir que tinha "cabelão".

Até mesmo o quadrinista Laerte Coutinho foi recentemente alvo de imensa curiosidade e de várias reportagens por estar se vestindo de mulher (http://moda.ig.com.br/modanomundo/ser+mulher+e+muito+caro/n1237812404702.html), com direito a pintar as unhas dos pés de vermelho. Ele não é gay, não toma hormônios e não pensa em fazer qualquer tipo de intervenção cirúrgica. Laerte entrou para o grupo dos chamados crossdressers; apenas quis "borrar" um pouco as fronteiras entre o masculino e o feminino.

Mesmo estes casos, por assim dizer, mais "normais" de incongruência de gênero desafiam preconceitos ainda bastante arraigados na sociedade. "É absolutamente impossível que seis bilhões de pessoas possam ser divididas em dois grupos", sentencia Jack Drescher, da American Psychiatric Association (APA). Todas estas histórias mostram que precisamos, no mínimo, repensar os nossos conceitos sobre gênero.

Foto: W. Peeters / Sydney Morning Herald